Matéria 18/02/2010
Há 25 anos, a atriz Bruna Lombardi, então com 33 anos, vestiu-se de homem e passou três meses cavalgando sobre as terras áridas de Paredão de Minas, um vilarejo de 225 habitantes no distrito de Buritizeiro, na época sem luz nem televisão, invadido de uma hora para outra por uma voraz trupe de profissionais da televisão, que consumiam um boi a cada refeição e 13 mil copos de água por dia, além de uma tonelada de frutas por semana.
Tudo isso para gravar uma das melhores minisséries produzidas na história da TV Globo, Grande Sertão: Veredas, baseada na obra homônima de Guimarães Rosa (1908-1967). Nela, Bruna Lombardi interpretava o jagunço Diadorim, sobre o qual fala nesta entrevista ao Estado.
Companheiro de Riobaldo, o narrador protagonista na minissérie recém-lançada em DVD pela Globo Marcas (quatro discos, R$ 69,90) e dirigida por Walter Avancini (1935-2001), Diadorim é um dos personagens mais complexos da literatura brasileira que, graças aos esforços da atriz, conquistou 10 milhões de espectadores quando os 25 capítulos de Grande Sertão: Veredas foram exibidos entre novembro e dezembro de 1985. Transposição digna do livro, a minissérie, agora editada nesse compacto de 14 horas, exigiu de seus adaptadores, Walter George Durst (1922-1997), Avancini e José Antonio de Souza uma dose considerável de coragem para dar ênfase ao amor proibido entre Diadorim e Riobaldo, isso um ano depois que o Brasil saiu oficialmente de um ditadura militar para conhecer um pouco a liberdade garantida pela democracia.
Como se sabe, Riobaldo só descobre que Diadorim é mulher depois de sua morte, no epílogo filmado com delicadeza e ousadia. Nele, Bruna, até então vestida com roupas rústicas para enfrentar a aspereza do sertão, aparece nua para deleite dos telespectadores e tristeza de Riobaldo (Tony Ramos) - por ter resistido em vão ao assédio de Diadorim. Transformada em Reinaldo para enfrentar a dura realidade sertaneja, Diadorim é o personagem mais complexo desse épico que, publicado em 1956, ainda corre mundo conquistando novos leitores - a recente tradução argentina (Editorial Adriana Hidalgo), lançada em 2009, acaba de ser comparada pelos críticos ao Ulisses de James Joyce.
Causa impacto aos críticos estrangeiros a forma com que Riobaldo, o narrador e protagonista da história, interpela um interlocutor que jamais aparece no épico. Esse ex-jagunço órfão, que passa de matador de aluguel a mestre, transformando-se num homem religioso após ter feito um pacto com o Diabo, atravessa o sertão como se cumpre um rito de passagem para o (auto)conhecimento, acompanhado nessa via-crúcis por Diadorim, que encarna o enigma desse território não nomeado em que até Deus deve vir armado para enfrentar seu inimigo.
Bruna Lombardi jura que não fez nenhum pacto para encarnar Diadorim, mas conta que, misteriosamente, passou os três meses de gravação sem menstruar, de tão possuída que ficou pela figura masculina do jagunço. "Devo ter trocado de hormônios", brinca. Mas, na época, exaurida, chafurdou na lama, passou fome, pensou em cortar os pulsos, chorou e implorou para que aparecesse alguém naquele sertão sem fim que fizesse a clássica pergunta: "O que faz uma garota bonita como você num lugar como este"? Não apareceu. Ao contrário. Confundida com outros homens da equipe, ela levou um empurrão de um jagunço figurante que pensou se tratar de uma guerra de verdade, quando as tropas federais entram em conflito com as forças provinciais. Bruna saiu bem arranhada de uns tiros no meio do mato e ainda teve de se arrastar na lama. Para sentir a força de Diadorim, montou num cavalo bravo que disparou, levando a atriz a pensar na morte.
Quando seu filho Kim, então com 4 anos, foi visitá-la no set de gravação, o menino estranhou aquele jagunço loiro de olhos verdes e cabelos curtos, disparando um "mami-caubói" ao vê-la cavalgando. Bruna sentiu-se a última das moicanas sentada no meio da imundície, tendo de buscar moitas distantes para fazer um simples xixi. "Éramos apenas cinco mulheres no set de gravação num bando de 500 figurantes e alguns jagunços, que nunca tinham visto televisão, achavam que eu era homem e me chamava Reinaldo de verdade, fazendo xixi perto de mim". Foi um laboratório e tanto. Descobriu que Diadorim não precisava se parecer com nenhum deles, o que deu à figura andrógina uma aparência de tranquila neutralidade.
Bruna, apesar disso, não arrisca, como os editores franceses, a classificar Grande Sertão: Veredas de "romance gay". "O bonito numa obra de arte é a multiplicidade de leituras que ela permite, mas, como sou uma mulher, acho interessante como Diadorim se transforma para poder sobreviver num meio hostil, árido, em que uma pessoa do sexo feminino não viveria sem ser violentada". Seu personagem, analisa, é uma "metáfora linda" da metamorfose a que são submetidos todos aqueles que atravessam o sertão como se fosse o deserto bíblico, refúgio de santos atrás de respostas para questões existenciais. "Eu venci tudo o que havia de frágil em mim para encarnar Diadorim, até mesmo o medo mórbido que tinha de facas". E o diretor Avancini, tirânico, não lhe permitiu sequer usar armas cenográficas.
Por milagre, ela foi a única do elenco que não se machucou. E não havia tratamento especial pelo fato de Bruna ser mulher. Ela participava das cenas de batalha, dormia em cabanas improvisadas e ainda tinha de ajudar os feridos nos combates. "Tony (Ramos) quebrou o dedo, Luís Fernando (Carvalho, assistente de direção de Avancini) teve pedra no rim, enfim, aconteceu de tudo nas gravações". Especialmente ataques de epilepsia entre os figurantes sob um sol de 50 graus, curados com taco de fumo e folha de aroeira-brava. "A experiência de gravar a minissérie foi religiosa, uma entrega total a Diadorim, um mergulho radical nessa aventura", resume Bruna.
Marco na história da TV traz cenas ousadas
A adaptação de Grande Sertão: Veredas para a televisão foi um marco. Ela tem momentos memoráveis. Um deles é o primeiro encontro entre Riobaldo e Diadorim, ainda meninos, às margens do Rio São Francisco, cena ousada em que um pedófilo surge das águas e provoca o último com uma insinuação de caráter sexual, sendo rechaçado com a faca afiada de Diadorim. O timing é exato, como na sequência que define a relação entre Riobaldo (Tony Ramos) e Zé Bebelo (José Dumont), a de mestre e discípulo, mostrada com economia de palavras e gestos. Outra sequência econômica é a de Riobaldo tentando convencer Diadorim a tirar as calças encharcadas pela chuva numa choupana, carregada de tensão sexual. A descida do protagonista às veredas mortas de seu desejo reprimido é acompanhada por Avancini com um interesse que vai além do sociológico, metaforizando a relação Riobaldo/Diadorim como a do conflito de quem cruza o sertão dividido entre a identidade e a diferença, entre a autoafirmação e a negação do outro.
Fonte:estadao.com.br
Há 25 anos, a atriz Bruna Lombardi, então com 33 anos, vestiu-se de homem e passou três meses cavalgando sobre as terras áridas de Paredão de Minas, um vilarejo de 225 habitantes no distrito de Buritizeiro, na época sem luz nem televisão, invadido de uma hora para outra por uma voraz trupe de profissionais da televisão, que consumiam um boi a cada refeição e 13 mil copos de água por dia, além de uma tonelada de frutas por semana.
Tudo isso para gravar uma das melhores minisséries produzidas na história da TV Globo, Grande Sertão: Veredas, baseada na obra homônima de Guimarães Rosa (1908-1967). Nela, Bruna Lombardi interpretava o jagunço Diadorim, sobre o qual fala nesta entrevista ao Estado.
Companheiro de Riobaldo, o narrador protagonista na minissérie recém-lançada em DVD pela Globo Marcas (quatro discos, R$ 69,90) e dirigida por Walter Avancini (1935-2001), Diadorim é um dos personagens mais complexos da literatura brasileira que, graças aos esforços da atriz, conquistou 10 milhões de espectadores quando os 25 capítulos de Grande Sertão: Veredas foram exibidos entre novembro e dezembro de 1985. Transposição digna do livro, a minissérie, agora editada nesse compacto de 14 horas, exigiu de seus adaptadores, Walter George Durst (1922-1997), Avancini e José Antonio de Souza uma dose considerável de coragem para dar ênfase ao amor proibido entre Diadorim e Riobaldo, isso um ano depois que o Brasil saiu oficialmente de um ditadura militar para conhecer um pouco a liberdade garantida pela democracia.
Como se sabe, Riobaldo só descobre que Diadorim é mulher depois de sua morte, no epílogo filmado com delicadeza e ousadia. Nele, Bruna, até então vestida com roupas rústicas para enfrentar a aspereza do sertão, aparece nua para deleite dos telespectadores e tristeza de Riobaldo (Tony Ramos) - por ter resistido em vão ao assédio de Diadorim. Transformada em Reinaldo para enfrentar a dura realidade sertaneja, Diadorim é o personagem mais complexo desse épico que, publicado em 1956, ainda corre mundo conquistando novos leitores - a recente tradução argentina (Editorial Adriana Hidalgo), lançada em 2009, acaba de ser comparada pelos críticos ao Ulisses de James Joyce.
Causa impacto aos críticos estrangeiros a forma com que Riobaldo, o narrador e protagonista da história, interpela um interlocutor que jamais aparece no épico. Esse ex-jagunço órfão, que passa de matador de aluguel a mestre, transformando-se num homem religioso após ter feito um pacto com o Diabo, atravessa o sertão como se cumpre um rito de passagem para o (auto)conhecimento, acompanhado nessa via-crúcis por Diadorim, que encarna o enigma desse território não nomeado em que até Deus deve vir armado para enfrentar seu inimigo.
Bruna Lombardi jura que não fez nenhum pacto para encarnar Diadorim, mas conta que, misteriosamente, passou os três meses de gravação sem menstruar, de tão possuída que ficou pela figura masculina do jagunço. "Devo ter trocado de hormônios", brinca. Mas, na época, exaurida, chafurdou na lama, passou fome, pensou em cortar os pulsos, chorou e implorou para que aparecesse alguém naquele sertão sem fim que fizesse a clássica pergunta: "O que faz uma garota bonita como você num lugar como este"? Não apareceu. Ao contrário. Confundida com outros homens da equipe, ela levou um empurrão de um jagunço figurante que pensou se tratar de uma guerra de verdade, quando as tropas federais entram em conflito com as forças provinciais. Bruna saiu bem arranhada de uns tiros no meio do mato e ainda teve de se arrastar na lama. Para sentir a força de Diadorim, montou num cavalo bravo que disparou, levando a atriz a pensar na morte.
Quando seu filho Kim, então com 4 anos, foi visitá-la no set de gravação, o menino estranhou aquele jagunço loiro de olhos verdes e cabelos curtos, disparando um "mami-caubói" ao vê-la cavalgando. Bruna sentiu-se a última das moicanas sentada no meio da imundície, tendo de buscar moitas distantes para fazer um simples xixi. "Éramos apenas cinco mulheres no set de gravação num bando de 500 figurantes e alguns jagunços, que nunca tinham visto televisão, achavam que eu era homem e me chamava Reinaldo de verdade, fazendo xixi perto de mim". Foi um laboratório e tanto. Descobriu que Diadorim não precisava se parecer com nenhum deles, o que deu à figura andrógina uma aparência de tranquila neutralidade.
Bruna, apesar disso, não arrisca, como os editores franceses, a classificar Grande Sertão: Veredas de "romance gay". "O bonito numa obra de arte é a multiplicidade de leituras que ela permite, mas, como sou uma mulher, acho interessante como Diadorim se transforma para poder sobreviver num meio hostil, árido, em que uma pessoa do sexo feminino não viveria sem ser violentada". Seu personagem, analisa, é uma "metáfora linda" da metamorfose a que são submetidos todos aqueles que atravessam o sertão como se fosse o deserto bíblico, refúgio de santos atrás de respostas para questões existenciais. "Eu venci tudo o que havia de frágil em mim para encarnar Diadorim, até mesmo o medo mórbido que tinha de facas". E o diretor Avancini, tirânico, não lhe permitiu sequer usar armas cenográficas.
Por milagre, ela foi a única do elenco que não se machucou. E não havia tratamento especial pelo fato de Bruna ser mulher. Ela participava das cenas de batalha, dormia em cabanas improvisadas e ainda tinha de ajudar os feridos nos combates. "Tony (Ramos) quebrou o dedo, Luís Fernando (Carvalho, assistente de direção de Avancini) teve pedra no rim, enfim, aconteceu de tudo nas gravações". Especialmente ataques de epilepsia entre os figurantes sob um sol de 50 graus, curados com taco de fumo e folha de aroeira-brava. "A experiência de gravar a minissérie foi religiosa, uma entrega total a Diadorim, um mergulho radical nessa aventura", resume Bruna.
Marco na história da TV traz cenas ousadas
A adaptação de Grande Sertão: Veredas para a televisão foi um marco. Ela tem momentos memoráveis. Um deles é o primeiro encontro entre Riobaldo e Diadorim, ainda meninos, às margens do Rio São Francisco, cena ousada em que um pedófilo surge das águas e provoca o último com uma insinuação de caráter sexual, sendo rechaçado com a faca afiada de Diadorim. O timing é exato, como na sequência que define a relação entre Riobaldo (Tony Ramos) e Zé Bebelo (José Dumont), a de mestre e discípulo, mostrada com economia de palavras e gestos. Outra sequência econômica é a de Riobaldo tentando convencer Diadorim a tirar as calças encharcadas pela chuva numa choupana, carregada de tensão sexual. A descida do protagonista às veredas mortas de seu desejo reprimido é acompanhada por Avancini com um interesse que vai além do sociológico, metaforizando a relação Riobaldo/Diadorim como a do conflito de quem cruza o sertão dividido entre a identidade e a diferença, entre a autoafirmação e a negação do outro.
Fonte:estadao.com.br
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